Combate no Reino Eterno – Surfista Prateado contra Thor
(Stan Lee – roteiro; John Buscema –
arte. Publicações no Brasil:
1-
Heróis
da TV, n. 07, Ed. Abril, janeiro de 1980, págs. 03 a 43 (colorida);
2-
Grandes
Herois Marvel n. 16, Publicada Em 1987.
3-
Surfista
Prateado – edição histórica, Ed. Mythos, 2003, págs. 123 a 161
Essa é uma das mais bem feitas HQ
da chamada era de bronze dos personagens superpoderosos, tanto no roteiro como
na arte extremamente bem desenhada. Os traços de John Buscema se mostram
refinados e altamente plásticos dando sutileza e leveza ao Surfista Prateado, e
detalhando tanto a Terra como o reino de Asgard com seus seres e divindades ao
lado de Thor, transparecendo-lhe uma personalidade nobre realmente. Essa
magistral história em quadrinhos é uma obra-prima e explora o filão da luta de
heróis como chamariz, mas a perspectiva e psicologia dos personagens é
minuciosamente explorada, principalmente a do Surfista Prateado, bem como a de
Loki, causador e disseminador do confronto. A revista que publicou essa HQ no
Brasil foi a “Heróis da TV“ de número 7 que me impactou à época pela beleza da
capa na qual estampava-se um espaço sideral (com Asgard bem ao fundo) no qual
aparecem os dois heróis principais a lutar. Este também foi o primeiro número
que comprei da coleção, influenciado pela arte da capa e miolo. O formatinho
ainda não era tão pequeno como foi ficando depois (este número foi o último
antes de diminuir mais ainda o formato), e a revista era vistosa e bem grossa
contendo 132 páginas além de outras HQ, em que destaco a do Punho de Ferro
roteirizada por Len Wein e desenhada por Larry Hama, e outra do personagem
Capitão Marvel (antes de sua metamorfose que ocorreria a partir do número 11
dessa estimada revista) roteirizada por Roy Thomas e excelentemente desenhada
por Gil Kane e seu estilo único. Aliás, os desenhistas daquele período primavam
por estilos pessoais cada qual, o que enriquecia sobremaneira o mercado
editorial de histórias em quadrinhos de super-heróis. Infelizmente houve um
período nos anos 90 em que as editoras norte-americanas não enxergavam essa
riqueza que alimentava o imagético, pasteurizando muitos estilos e forçando
desenhistas jovens e imaturos a imitarem um ou outro estilo que na verdade era
péssimo e carente de equilíbrio e conhecimentos anatômicos. Por sorte, de anos
para cá o rumo tem se aprumado e alguns artistas têm mantido seu estilo pessoal
como Phil Gimenez, por exemplo, e outros novos que não tenho seguido, mas que
vejo despontarem.
Voltemos à nossa
HQ principal que aqui está sendo analisada, e que também foi publicada por mais
duas vezes no Brasil, sendo que na terceira em preto e branco (numa edição em
que o preto estava mais pra cinza, infelizmente). A HQ cujo título na Heróis da
TV era “Combate no Reino Eterno“ foi originalmente publicada em Silver Surfer
#4, datada de fevereiro de 1969! Pois bem, a primeira página que abre esta
aventura na revista da editora Abril, traz ao trono um deus irado e obcecado
lembrando outros vilões das artes, e até do humor, como o grão vizir Iznogud
que foi cria de Tabary e roteirizado por Goscinny, justamente trazendo esses
recalques e melindres atinentes a tal espírito obsessivo reiterante no rol das
mentes perversas (mas que deixam escapar falhas psicológicas muito graves, tal
como vemos em novelas e até na vida real – e que foram bem engendradas no
roteiro do álbum de 2004 “Loki“ de Robert Rodi e Esad Ribic cuja edição
luxuosa de capa dura mostrava um Loki também obcecado mas que finalmente
alcança o poder derrubando e aprisionando Thor que quase não aparece no
enredo). Essa, umas das mais inteligentes HQ que já li, recebeu atualmente pela
Marvel uma versão animada por computador em 4 partes calcada na obra quadrinizada,
mantendo a arte original. Loki sempre quis suplantar seu irmão Thor,
destronando Odin e tomando o trono à força (tal qual Iznogud obcecado pelo
califado, o qual nunca venceu à exceção de uma história que infelizmente não
foi publicada no Brasil – mas que deu um fim tragicômico ao vilão que pensou se
vangloriar sendo Califa). Também lembro o recente filme Thor, que trouxe à
baila algumas reiterações que se encontram nessa versão nórdica adaptada por
Stan Lee aos quadrinhos heroísticos.
Pois bem, o
intuito do Surfista Prateado na HQ ora estudada, era se livrar do limite
invisível imposto a ele por Galactus, que o aprisionou à órbita terrestre como
castigo por ter-se rebelado (tendo tido o auxílio do Quarteto Fantástico), já
que o gigante espacial queria devorar o planeta Terra. Convivendo com os seres
humanos que defendeu do devorador de mundos, foi descobrindo que estes ainda
estavam em fase de amadurecimento e por isso muitas vezes mal compreendiam suas
ações e não conseguiam viver em paz, como era em seu planeta natal, onde vivia
antes como Norrin Radd: Zenla, o planeta daquele que depois veio a se tornar o
Surfista Prateado, era bem diferente da Terra, pois lá não havia violência, que
ainda grassava em nosso mundo, motivo pelo qual viam o Surfista como um pária,
e em vez de perceberem a ajuda que traria, o rechaçavam com violência,
lembrando o que foi feito ao cristo cósmico há mais de dois mil anos (acerca
dos Super-heróis e a visão espiritualista já publiquei o artigo "A questão
espiritual em Thor, Surfista Prateado e Super-Homem“ que pode ser acessado no
site Bigorna em http://www.bigorna.net/index.php?secao=artigos&id=1280807495.Se
quiserem se aprimorar, ainda há dois livros que falam dessa ligação dos
super-seres norte-americanos ficcionais e sua aproximação ao mítico, e que
podem ser encontrados numa busca pela Internet: um é o livro “Nossos
Deuses são super-heróis“ e o outro “Super-heróis, religiosidade e sociedade e
cultura“).
A magistral
história "Combate no Reino Eterno" começa no espaço cósmico em que o
Surfista buscando sua liberdade, mais uma vez despeja a amargura
existencial ao léu sideral, tentando entender o imponderável e o insondável ,
até que é perturbado por Loki. Mas este lhe chega aos poucos, após sondar sua
mente e descobrir seus mais intensos desejos e o que até então havia feito.
Esses detalhes fazem a mente maquiavélica de Loki lucubrar um plano, o qual
seria tentar levar o Surfista de encontro a seu irmão numa batalha que poderia
ser ganha pelo ex-arauto de Galactus se fosse obscuramente ajudado por Loki,
sem que aquele o notasse!
Cenas
magistralmente desenhadas por John Buscema passam a emoção a que se encontravam
os personagens, como no último quadrinho da página 4 da HQ, quando o Surfista
aparece desenhado arremetendo a si mesmo contra a barreira invisível
imposta a ele por Galactus. A expressão de desespero em obter a passagem é
transmitida pelo olhar que Buscema faz ao lânguido herói, enquanto a aura de
Loki aparece abaixo a observar o intento...
Como se verifica na arte, o desenhista priorizou a forma atlética sem exagero nos corpos dos personagens, e abusou de variados ângulos, como na página seguinte em que o Surfista é rebatido pela barreira e se desconecta da prancha. Nas páginas 10 e 11 da HQ, o Surfista reflete ao lado de animais na floresta, quando Loki finalmente se apresenta. A seguir sucede-se uma luta entre ambos, obviamente provocada por Loki para testar seu oponente. Por fim, o vilão dissimula que encontrou quem procurava para por fim aos planos diabólicos de seu irmão Thor. Como o Surfista não conhecia nenhum deles, é facilmente ludibriado por uma visão arranjada por Loki, na qual se visualiza Thor como um conquistador que quer destronar seu próprio pai, Odin, com um exército pessoal de traidores. Assim, em retribuição ao auxílio, Loki promete ao Surfista livrá-lo da maldição de Galactus rompendo a barreira e permitindo-lhe que volte a seu planeta, uma vez realizada a missão. É desse modo que o Surfista Prateado adentra sozinho Asgard com a permissão de Heimdall, guardião da ponte do arco-iris (Bifrost), e é convidado a se instalar à mesa no almoço ao lado de Thor, que se recusa a lutar com o arauto do espaço, sem antes ouvir suas queixas durante a refeição grupal. A partir desse instante o Surfista começa a estranhar tudo isso, e antes que lhe ocorram mais considerações, a essência maléfica e invisível de Loki faz com que um dos guerreiros asgardianos atire uma espada diretamente contra o Surfista, que então imagina ter sido enganado por Thor e começa a lutar com todos ali presentes. Enquanto isso, Odin é avisado da batalha e solicitado a intervir, mas permanece inalterado, numa das passagens mais interessantes da história. Eis uma de suas falas:
“...ao estranho não cabe culpa alguma! São forças
alheias à sua vontade que o impelem a atacar! Que a peleja continue! Dano algum
pode provir de um combate, quando os corações são puros!”
Apesar de tudo
parecer pueril na atualidade, sinto uma beleza extraordinária nessas histórias,
o que correspondem às lendas de vários períodos da história humana. O filme El
Cid trouxe mensagens belíssimas do que norteou a lenda que girou em torno do
campeador espanhol que conseguiu expulsar parte dos mouros da Espanha e
aglutinar novamente o reino que se fragmentava com reis brigando entre si e
perdendo terreno aos árabes. Segundo a lenda (baseada em fatos que ocorreram),
seu coração e coragem eram puros, e não tinha ganância, mas um senso de
equidade inolvidável. Em uma das passagens que se conta desse mito, ele evitou
o exílio de um dos filhos do rei, quando um deles ordenou a prisão de seu
próprio irmão, para ficar com o trono, após a morte de seu pai. Mas El Cid não
pendeu para nenhum dos lados, apenas fazia o que sua consciência ditava:
não podia auxiliar um dos príncipes em detrimento ao outro. Só ajudava quando
via que um deles agia erroneamente contra o outro (pois há que se lembrar: Cid
foi o campeador do Rei, o que quer dizer que era seu braço direito e protetor,
portanto, uma vez morto o rei, seu campeador deveria proteger os príncipes). Em
seguida, El Cid foi exilado porque foi o único do reino que ousou questionar um
dos irmãos que acabou no trono, acerca de sua culpa (ou não) pela morte de seu outro
irmão, apunhalado nas costas numa estranha emboscada. Tempos depois, Cid fez
seu próprio exército e continuando a luta contra os mouros, recusou-se a se
consagrar rei por conta própria, ainda que estimulado pelos seus companheiros,
após tomar de volta com eles, um dos castelos que estavam sob a custódia dos
mouros. E ainda fez um de seus cavaleiros levar a coroa reconquistada ao rei
(que o havia exilado), para que entendesse que ele queria unificar a Espanha, e
não guardava rancor desse jovem mas impetuoso monarca. Ao final, Cid, pouco
antes de morrer devido a uma flecha recebida noutra posterior batalha, recebe a
visita do rei, que arrependido de suas ações vai ao seu auxílio, lutar contra
os mouros. Esta lenda (que faz parte de uma realidade ocorrida na Espanha
moura), mostra que o ser humano que resguarda seus ideários, quão nobres sejam,
e que se mantém fiel a eles, apesar de obstáculos, leva uma vida mais digna e
justa, e de certa forma, consegue desenvolver suas tarefas ainda que com
oposição (que não se mostra, então com esse exemplo, eterna, visto que o rei
que odiava Cid resonsiderou e se arrependeu, quase que como um ensinamento dado
por Cid – que realmente o ensinava a reinar: noutra das passagens anteriores, o
então príncipe pede a Cid que mate um dos traidores numa emboscada que
fizeram-lhes, quando o herói campeador interrompe e grita com o príncipe,
dizendo que qualquer um pode tirar uma vida, mas só um rei verdadeiro pode
mantê-la!). Mesmo que não faça muito sentido aos jovens da atualidade, entra em
ação aqui a questão da justiça e das normas e regras cavaleirescas e nobres,
que todo ser equânime possuía como parte de seu desenvolvimento (quem quiser,
busque o livro ou o filme em DVD, pois é bem interessante).
De certa
maneira, é da mesma forma que essa história em quadrinhos do Surfista Prateado
contra Thor traz à baila (com a fala de Odin), a questão da pureza e da nobreza
das intenções, apesar dos obstáculos que se interpõem no caminho dos heróicos e
destemidos (mas justos como Cid) personagens...e que algo maior pode se suceder
quando há mais em jogo.
Na referida
batalha épica dos quadrinhos, quando finalmente o Surfista Prateado menciona
Loki durante o furor da luta, Thor, ao ouvir o nome, questiona-o sobre o que
sabe de seu irmão. A partir desse momento, a influência de Loki começa a ser
debelada, e o vilão, ainda invisível, faz desaparecer o Surfista do reino
asgardiano reportando-o novamente à área próxima do planeta Terra, no mesmo
ponto onde se encontrava antes, pois Loki temia que seu plano fosse descoberto
pelos asgardianos, que o puniriam. Nisso, Thor estranhando o sumiço, todavia,
sente que a aura daquele ser reluzente e sua coragem impregnara o reino de uma
forma distinta transformando tudo, após a luta. Enquanto isso, no último
quadrinho da HQ, o Surfista novamente se autocomisera por se encontrar
novamente preso à famigerada barreira, tendo perdido a esperança que havia sido
prometida por Loki, por quem ele percebera ter sido maleficamente enganado e
manipulado. Porém, em sua última fala, mantém a esperança de que um dia “os
grilhões se partirão, e, por fim, o Surfista Prateado conhecerá outra vez a
liberdade“.
Além dessa
mensagem positiva do roteirista Stan lee, há de se salientar a maneira mais
“culta“ de se narrar a história também nos balões de fala. As duas últimas
páginas exemplificam bem isso quando Balder fala: “Se Thor estiver ferido, que
o agressor se acautele“. Enquanto que na página seguinte Thor brada:
“Protege-te Milady! Ele ataca
novamente!“
Como se vê, esta
HQ do Surfista Prateado foi produzida com esmero, sendo uma HQ de arte bela com
um roteiro intrigante e reflexivo!
Ora, eu tinha 13
anos quando li tal história em quadrinhos. Somando aos ideários e mensagens de
heroísmo, justeza e esperança que eu captava (e gostava), havia também uma
escrita que (apesar de a tradução ser minimizada devido ao “formatinho“) me
fazia lidar bem melhor com uma leitura mais correta e de fala mais complexa, incluindo
palavras de outras línguas (“Milady“) e menos usadas (assim como verbos e suas
variações como “se acautele“).
O que quero aqui
mostrar é que houve HQs, mesmo que de Super-Heróis, de uma beleza ímpar! Essa
aqui, nota-se claramente, teve mais esmero e cuidado em sua elaboração, tanto
no roteiro como na arte perfeita, plástica e exuberante de Buscema (já
falecido). Naquela época o gibi do Surfista Prateado tinha mais páginas que o
usual, e não era mensal, motivo pelo qual os artistas tinham mais tempo para
elaborar as histórias, com mais refinamento na arte. Pois é sabido que devido à
contingência de lançar revistas mensais de personagens, a qualidade do desenho
dos quadrinhos teve que ser simplificada, conforme salienta e questiona, entre
outras razões, o texto “O desenho inferior das histórias em quadrinhos“, de
Edgard Guimarães e publicado como encarte em seu último fanzine “QI # 119“.
Quem conhece e aprecia desenhos, saberá do que falo, ao passar seu olhar pelos
quadrinhos e pela arte do desenhista, com o refinamento dos ângulos que Buscema
colocou nos personagens e a musculatura e perspectiva – precisa e plástica ao
mesmo tempo.
Como um exemplo
final da qualidade de tais traços, reparem na plasticidade artística no
quadrinho de uma das páginas iniciais em que Loki é visto do alto (câmera alta)
e de costas sobre um prédio (vide imagem)...
Gazy Andraus, São vicente-SP, entre 2012 e março de 2013 (Imagens graças
ao Aquiles grego: http://4sharedtrend.com/f/4475274/737_surfista_prateado_v1_005_gibihq_aquiles_grego_08jul09_br.html)
[1]Coordenador
do Curso de pós em Docência no Ensino Superior da FIG-UNIMESP, Pesquisador do
Observatório de Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP),
Doutor em Ciências da Comunicação da ECA-USP (melhor tese de 2006 pelo HQMIX em
2007), Mestre em Artes
Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, e autor de
histórias em quadrinhos autorais adultas, de temática fantástico-filosófica.
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