sábado, 2 de maio de 2015

Os momentos de respiros nas HQs de Super-Heróis das décadas de 1960 e 70: o caso Kent!

Gibi: Super-Homem, nº. 2 – ago. 1984, Abril


Roteiro: Len Wein; Arte: Neal Adams;


Figs. 1 e 2

Prof. Dr. Gazy Andraus[1]

Retomando minhas resenhas acerca das HQs de Super-Heróis clássicas publicadas nas décadas passadas que promoveram a mim intensa atividade na leitura e realização de desenhos, lembro-me que vez ou outra, saíam histórias em que não eram do padrão de roteiros com vilões, trazendo um diferencial das que existem hoje em dia, sempre massacrantes nas ações e nunca dando fôlego ao leitor, e para que adquira todas as revistas com roteiros continuados em outras revistas etc. 










Figs. 3 e 4

Uma dessas histórias interessantes, curtas e que brincam com o personagem em sua identidade secreta, sem ter que expor sua fantasia de herói, foi com Super-Homem na série “A vida particular de Clark Kent”. Tal HQ, decerto parte de uma série cujas outras histórias não me lembro se vi, saiu pelo menos duas vezes no Brasil (figs 1 e 2): a primeira em preto e branco pela EBAL (1973) e na segunda, colorida e em formatinho pela Abril (1984), que falhou em não dar os créditos (mas que haviam sido dados na EBAL). O roteiro era de Len Wein e a arte do magistral Neal Adams. Há um jogo de ângulos distintos e perspectivas variadas no cenário, que Adams costumava usar (figs. 3 e 4). Mas nesse caso em específico, usou tais recursos mais ainda, devido ao que pedia a própria história, enriquecendo-a cinematograficamente. Na HQ, Clark Kent é interpelado por sua vizinha de apartamento, que lhe pede auxílio por alguns minutos, a cuidar de sua filhinha que aparenta ter quase uns 2 anos, enquanto ela precisava sair. Sem ter tempo de negar o auxílio, apesar de estar preocupado em realizar um trabalho jornalístico, Clark é obrigado a aceitar a tarefa. Dentro do apartamento da amiga, enquanto usa o telefone para avisar que iria se atrasar para uma entrevista marcada que ele faria, percebe que a criança se esvaiu da poltrona, sumindo de seus cuidados. A seguir, nas 5 páginas restantes (a HQ tem apenas 7 páginas), com o jogo de câmeras que Adams desenha (câmera alta, baixa, plano de detalhe e close dentre outros, como se vê nas fig.s 5 e 6), e com o roteiro enxuto de Wein, o super-homem humanizado passa a averiguar os cômodos do apartamento, saindo pelos corredores do andar e até visitando outra moradora ao perceber um choro vindo do apto dela...mas descobre ser outra a criança lá habitando (figs. 7 e 8). 
Figs 5 e 6
Figs 7 e 8
No último quadrinho da penúltima página, retorna ao apartamento da desaparecida e a encontra quietinha na mesma poltrona de onde sumira ao princípio, como se nunca houvesse desvanecido.  Para arrematar e descobrir como ela havia se evadido e voltado sem que ele percebesse ou soubesse onde se escondera, Kent finge ir ao telefone novamente e como um detetive, de soslaio, fica a verificar os passos da menina, descobrindo, por fim, que ela saíra engatinhando pela portinhola inferior da porta, usada nos EUA para quem possui animais de estimação em casa (fig. 9).   
Fig. 9
Ao final, há um pouco de humor: ao se despedir da vizinha já de volta e agradecida pelo cuidado de Kent com sua filhinha, e após tal trabalho que parecia leve mas que lhe exigiu perspicácia, o Super-Homem em potencial, reflete como um simples humano aliviado, dizendo a ela: “Não foi nada! Ela não deu trabalho nenhum!” Enquanto pensa: “Só quase me matou de susto” (na versão traduzida da Abril, já que na da EBAL tal pensamento não aparece, perdendo muito desse humor singelo – restando saber se no original havia tal balão: ao que penso que sim, pois denota que os autores da HQ quiseram mostrar que por mais super que um ser possa transparecer, há situações cotidianas mas que surpreenderiam até o mais poderoso dos homens, no caso, o Super-Homem). A HQ é simples, com poucas páginas, mas um alento, pois em meio a aventuras fantásticas, epopéias galácticas, guerras espaciais etc, há uma afinidade do que ocorre habitualmente nas HQs desse gênero com as situações cotidianas, tornando-as quase tão estressantes como seria uma luta contra um vilão superpoderoso qualquer. Não sei se atualmente tais temas sumiram de vez nos quadrinhos de heróis, mas seria interessante as novas gerações saberem que existiram...e que eram bem feitas e interessantes, intercalando vez ou outra com as epopéias, e usando conceitos atinentes às qualidades dos heróis (a astúcia de um detetive como Batman, a inteligência arguta de um super-homem etc, sem necessitar usar força bruta e sem um vilão sempre a molestar alguém). Simplesmente uma criança, com sua pureza e inteligência brincando com um adulto! Na DC Comics eu lia mais HQs desse tipo, do que nas da Marvel, mas fica  aqui o desafio aos leitores: se havia HQs assim na editora concorrente e/ou se ainda aparecem histórias como essas nas páginas das "Crises" e batalhas homéricas sem fim (sei que Alan Moore vez ou outra prestava tais homenagens, inclusive a Will Eisner, compondo roteiros atuais com situações ingênuas como as antigas)! Então, espero que haja! Ainda mais com desenhos tão bons como esses de Adams. Fica aqui minha homenagem a essa época e a algumas dessas histórias deliciosas de se ler!

Gazy Andraus, São Vicente, 02 de abril de 2015.

[1] Coordenador e prof. do Curso de Pós-Graduação em Docência no Ensino Superior e criador da disciplina de HQ e Zine no curso de Tecnólogo em Design Gráfico da FIG-UNIMESP - Centro Universitário Metropolitano de São Paulo, Doutor em Ciências da Comunicação pela USP, mestre em Artes pela UNESP, pesquisador do Observatório de HQ da USP e autor independente de HQ fantástico-filosófica.  gazyandraus@gmail.com ;  http://tesegazy.blogspot.com/http://classichqs.blogspot.com.br/